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50 anos do Golpe: “tenho pena dos torturadores”, diz Espinosa

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Espinosa
Foto: Eduardo Metroviche/arquivo/Visão Oeste

Leandro Conceição

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O jornalista e professor universitário osasquense Antonio Roberto Espinosa foi um dos idealizadores da histórica greve da Cobrasma, em 1968, uma das primeiras mobilizações de enfrentamento à ditadura militar, e fez parte da luta armada contra o regime, como dirigente na VPR e na VAR-Palmares. Foi preso e torturado.  Na entrevista abaixo, ele fala sobre os 50 anos do golpe, a luta contra a ditadura e sua relação com a então companheira de luta armada Dilma Rousseff. Sobre os torturadores, diz: “tenho pena, porque são sub-humanos”.
O jornalista e professor universitário osasquense Antonio Roberto Espinosa foi um dos idealizadores da histórica greve da Cobrasma, em 1968, uma das primeiras mobilizações de enfrentamento à ditadura militar, e fez parte da luta armada contra o regime, como dirigente na VPR e na VAR-Palmares. Foi preso e torturado.
Na entrevista abaixo, ele fala sobre os 50 anos do golpe, a luta contra a ditadura e sua relação com a então companheira de luta armada Dilma Rousseff. Sobre os torturadores, diz: “tenho pena, porque são sub-humanos”.

Visão Oeste: Como vê as manifestações pró-ditadura, os comentários de extrema-direita na internet, aos 50 anos do golpe? Há uma guinada da sociedade brasileira ao conservadorismo?

Existem as viúvas da ditadura, mas são muito poucas. São provocadores ideológicos, neonazistas, racistas, homofobicos… pessoas quase doentias. Existem alguns também qe estão ali de alegre, nem sabem por que estão ali. Mas vejo que é um movimento muito pouco expressivo. A Marcha da Família, gastaram uma grana pesada para mobilizar, teve 500 pessoas. Os comentários da internet não repercutem nas manifestações de rua. São só provocações.

“Devo minha vida à Veja”

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Não vejo ainda uma seriedade nisso. Gostaria que os Bolsonaros da vida, Marco Antonio Villa, os historiadores mais à direita fizessem uma pesquisa séria e publicassem para iluminar o debate. Mas parece que eles não têm energia intelectual, são só provocadores. Dizer que era isso ou o comunismo, que todo mundo perderia as casas no Brasil, é um discurso muito chulo, rasteiro. De qualquer maneira, se essa fração da ideologia crescer, eu daria a ela liberdade. Essas coisas você mata no campo das ideias, debatendo. Eles estão tão por baixo hoje, que só entram na internet, onde qualquer idiota posta um texto.

Isso mesmo com um certo apoio da mídia, da nova “estrela” do jornalismo, a Rachel Sheherazade…
Isso. Aliás, em todas as manifestações [da extrema direita] tinha mais jornalista do que manifestante.

Como vê as tentativas da mídia de redimir do papel que os jornais tiveram no apoio ao regime militar?
Nem toda [a mídia tenta se redimir]. A Veja, por exemplo, congrega alguns pensadores de direita, que tentam estruturar uma ideologia, uma justificativa para o regime. Só que ela também está perdendo público, anunciantes. Todos [os grandes veículos] estão perdendo. Agora, a Veja está preparando seu desaparecimento de uma maneira melancólica. Ela poderia ter um destino mais digno, não é? Ser mais isenta no tratamento. Devo minha vida à Veja.

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À Veja? Como assim?
Fomos presos em três, um deles morreu na tortuna, o Chael [Charles Schreier], que era estudante de medicina na Santa Casa. A prisão do Chael provocou uma grande matéria da Veja, com capa. A capa era Torturas. E dentro contava nossa prisão, a morte do Chael, o laudo médico apurando que ele foi morto na tortura.

Foi uma matéria que repercutiu no mundo inteiro. Essa repercussão fez com que os torturadores tivessem mais cuidado comigo. A Maria Auxiliadora, que foi a terceira presa, um ano e pouco depois ela acabou saindo da prisão, no sequestro do embaixador suíço (Giovanni Enrico Bucher, no Rio de Janeiro, em 1790, trocado pela libertação de 70 presos ligados à Vanguarda Popular Revolucionária – VPR).

Ela acabou se suicidando no metrô de Berlim. Dos três, só sobrevivi eu. Se não fosse a matéria da Veja, feita pelo Bernardo Kucinski e pelo Raimundo Pereira, minha chance de sobreviver teria sido bem menor.

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Exceto a Veja, os jornais hoje tentam se justificar, mas não há pedidos de desculpas pelo apoio à ditadura…
Não há. Os jornais sabiam o que estava acontecendo. Todos tinham plantonistas que cobriam as delegacias. Quando eu fui preso, por exemplo, no Rio de Janeiro, o aparelho nosso estava sendo vigiado há 15 dias. Ele começou a ser vigiado por uma equipe da polícia do Rio porque o dono da casa entregou, dizendo que achava nos mexíamos com carro roubado.

Eles ficaram lá 12, 13 dias vigiando. Os jornalistas do [jornal extinto] Luta Democrática acompanharam os policiais na campana. Quando os investigadores induziram que nós não éramos bandidos comuns, éramos políticos, passaram para o Dops do Rio.

Na mesma noite que em fomos presos, saiu matéria dizendo que éramos terroristas e com enfoque ‘preso o homem das mil caras’, porque tinha muitos documentos com fotografias minhas, de vários jeitos, com barba, sem barba… Eles sabiam da tortura, sabiam dos caras que eram mortos. Algumas redações até procuravam fazer matérias, outras desistiam.

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Também tinha a questão da censura. A partir de 1970, [para driblar a censura] usavam receitas de bolo e estrofes do Camões. Mas foi o Estadão.

A Folha, não. A Folha emprestava suas viaturas à polícia. A imprensa foi, no geral, cúmplice. Em alguns casos, foi coautora. Sobretudo o grupo Folha, a Folha da Tarde. A Folha entregou o jornal Folha da Tarde para o esquadrão da morte e o Dops de São Paulo, os policiais viraram repórteres. A linguagem deles era ‘presunto’, ‘vagabundo’, ‘elemento’, linguagem da polícia.

Pesquisadores apontam que a falta de punição aos abusadores da ditadura refletem na polícia violenta que temos hoje. O senhor concorda com a avaliação?
Eu acho que há. Mas não dá só para explicar por aí. Favelados, pobres, sempre foram tratados muito mal pela polícia. A ditadura criou técnicas novas, transformou isto em política de Estado, e formou monstros que a democracia, ou melhor, o retorno à legalidade, não conseguiu extirpar.

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Isso [a violência policial] vem da tradição escravista do país. Os escravos sempre foram torturados, mesmo quando não cometiam qualquer delito, com suspeitas ou sem suspeitas.

E o Estado brasileiro é um Estado formado no período da escravidão, do colonialismo, enfim, no qual tanto o escravo quanto o estrangeiro eram objetos de exploração, tanto quanto os burros de carga. O Estado sempre foi cúmplice disso.

E o Estado continua naquele negócio do ‘otoridade’, do ‘sabe com quem ta falando’, que era anterior à ditadura. Esse tipo de coisa, para o Brasil superar precisa de uma revolução cultural.

“A imprensa foi, no geral, cúmplice. Em alguns casos, foi coautora”

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É necessário não só colocar leis, mas quase que rasgar todas as leis e acabar com a burocracia, com o direito adquirido que algumas pessoas têm sobre outras. Que o funcionário do estado acha que tem sobre o civil, que o fardado acha que tem em relação ao não fardado. Isso é de um elitismo brutal, de um preconceito contra o pobre, o excluído, o desempregado. Ele é tratado como se fosse um intruso.

É por isso que digo que não é democracia, o que aconteceu no Brasil não foi redemocratização. Foi uma volta ao Estado legal. Existem leis, mas a lei só beneficia quem paga, a quem pode contratar um tremendo de um advogado.

Tenho um aluno que apareceu um dia todo machucado na escola. Perguntei o que aconteceu, ele disse que participava de uma festa na comunidade, uma vizinha chamou a polícia, que chegou dando tiros de bala de borracha, e acertaram a cara dele. Eu falei: ‘você foi à delegacia, dar queixa?’.

“Com a Comissão da Verdade, ela chega até o limite na questão”

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Ele falou: ‘eu moro na comunidade, se eu fosse à delegacia e prestasse queixa, eu ficaria marcado [pelos policiais]. Então, achei melhor deixar barato’.

Que democracia é essa? Morador da comunidade, pobre, não é considerado cidadão, não pode dar queixa na delegacia. Ele apanha, é machucado, tem que voltar para a casa e ficar calado. E passar pelo cara e ainda falar ‘bom dia, senhor’. Quem tem os direitos civis é quem pode comprar. Quem pode comprar um advogado, um advogado que corrompe delegado…

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Por que o senhor é contra a definição ditadura civil-militar, defendida por parte da esquerda?
Foi ditadura militar. Ponto. Alguns setores de Direitos Humanos, alguns militantes passaram a falar ditadura civil-militar porque existiram vários empresários que deram apoio à Operação Bandeirante, funcionários da administração civil que foram para o DOI-Codi, participaram.

Então, passaram a chamar de ditadura civil-militar para dar um recado para esses caras [que colaboraram nas violações de Direitos Humanos durante o regime]: ‘não foram só os militares, foram vocês também’.

Só que a expressão ditadura militar é um conceito. Puxa-saco, sabujo, todo regime tem.  Ao colocar o nome ditadura civil-militar, estão permitindo que os sabujos influenciem na produção teórica. O que é a corporação militar?

 “Uma ação de banco, por exemplo, levava três minutos”

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É uma burocracia do estado. E é esse setor da burocracia estatal que deu o golpe nas instituições, que afastou os políticos legitimamente eleitos, mudaram as leis, fizeram leis do ponto de vista deles, militar, tentando transformar a sociedade numa grande caserna, num grande quartel.

Então, o que é isso? É uma ditadura de uma fração da burocracia pública, a fração armada. Se você chama o regime de civil-militar, você está ‘adocicando’. A intenção é radicalizar, mas, na verdade, você está ‘adocicando’. O que é uma ditadura militar? É uma ditadura que não tem leis, que a lei é autoridade militar, a hierarquia militar. Você quer uma coisa pior do que isso? Então, o nome é ditadura militar.

Como foi sua atuação na luta contra a ditadura militar?
Em 1967 eu era estudante de filosofia na USP lá na Maria Antonia, onde aconteceu aquela guerra com a Mackenzie. Em 1968, no segundo ano de filosofia, eu comecei a dar aula, na ‘madureza’, hoje supletivo, em Osasco e São Paulo. Desde 1966, todas as entidades estudantis haviam sido fechadas, nós criamos uma associação do curso clássico do Ceneart, que criou, em seguida, grêmios livres em todos os colégios da região. E criou, inclusive, o Circulo dos Estudantes Osasquenses, CEO, no lugar da antiga UEO (União dos Estudantes de Osasco), que tinha sido fechada. Fizemos passeatas. Eu estava terminando o curso.

“[Tortura tinha] choque, pau-de-arara, afogamento, porradas em todo o corpo…”

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No ano seguinte, eu já estava fora. Mas o grupo de lideranças de Osasco cresceu. Nós ‘tomamos’ o Sindicato dos Metalúrgicos. Tomamos, não, fizemos uma frente e ganhamos a eleição. Com 19 anos, o José Ibrahim chegou à presidência do Sindicato dos Metalúrgicos. Começamos a fazer um trabalho muito grande, criando comissões em todas as fábricas, a partir do sindicato, mas criando uma coisa paralela, para dar força ao sindicato.

Eu dava curso de formação política para operários, para novos estudantes. Também íamos aos bairros. Muitas das associações de amigos de bairro que existem até hoje, nós fundamos naquela época, e tinham uma orientação de esquerda, para lutar contra a ditadura.

Fizemos a greve de 1968, com a tomada da Cobrasma. Fui para a clandestinidade, porque a polícia sabia que eu era uma das lideranças. Na clandestinidade, entre o 1º de maio [de 1968], em que nós tomamos a Praça da Sé, e a greve de Osasco [em julho de 1968], eu fui recrutado pela VPR (Vanguarda Popular Revolucionária).

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Aí comecei a fazer também ações armadas, contra bancos etc. Preparamos a tomada do 4º Regimento de Infantaria (4º RI), em Quitaúna, o quartel do Lamarca. Quando alguns companheiros estavam pintando um caminhão que eu tinha ido tomar na transportadora, o caminhão foi localizado, eles foram presos. Cinco dos dirigentes foram presos. Sobrou só um, que me convocou para o comando da VPR.

Seis meses depois de ter entrado na VPR, eu estava no comando nacional. Entrei antes que o [Carlos] Lamarca. ‘Seguramos’ as prisões, fizemos algumas ações pegando dinheiro, enfim. Garantimos a segurança da organização e marcamos um congresso. Para esse congresso, apoiei o nome do Lamarca para fazer parte da direção. Também decidimos fazer uma fusão com a Colina – Comandos de Libertação Nacional.

A Dilma fazia parte do comando da Colina. Em julho de 1969, os dois comandos nacionais se reuniram em Mongaguá e daí saiu a VAR-Palmares, que é a fusão das duas. Eu fiz parte do comando nacional da VAR-Palmares, junto com Lamarca e um marinheiro, chamado Claudio Ribeiro. Do outro lado o [ex-] marido da Dilma, Carlos Araújo – a Dilma não foi eleita -, uma companheira chamada Maria do Carmo, um outro chamado Juarez Guimarães de Brito.

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A VPR ainda ‘fez’ o quartel da PM de São Caetano. Eu participei, entrei no quartel. Fazer é tomar. Chegar lá, na porta, colocar uma navalha no sentinela, tomar a arma dele, entrar com o sentinela amarrado, dominar todos os que estão na armaria, no alojamento, amarrar todo mundo, pegar todas as armas, sem dar um tiro. E levar tudo isso para a revolução.

Na VAR-Palmares, nós fizemos o cofre do [ex-governador] Adhemar de Barros, que era o cofre da corrupção, que foi a maior ação armada [contra a ditadura], 2,5 milhões de dólares, eu participei da coordenação.

A VAR-Palmares sofreu um racha, o Lamarca saiu, fundou uma nova VPR. Após o racha, a VAR-Palmares fez um novo congresso e a Dilma, que tinha sido do comando da Colina, foi eleita de novo, voltou a fazer parte do comando nacional.

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Ela fazia parte do comando nacional quando eu fui preso, junto com o Chael e a Maria Auxiliadora, que era minha namorada. Fiquei quatro anos preso. Foram dois anos clandestino, procurado pela polícia, com fotografia em cartazes. Depois, foram quatro anos preso sem julgamento.

 “Organizações de esquerda passaram por um processo de atomização muito forte”

O senhor chegou a participar de algum homicídio?
Por sorte, não. Por sorte e por previsão. Uma característica da VAR-Palmares é que as nossas ações eram muito bem preparadas. Nós íamos armados e, se houvesse algum imprevisto, a gente atiraria. Poderia ter matado, a gente estava disposto a fazer isso.

Só que as nossas ações eram muito bem planejadas. Uma ação de banco, por exemplo, levava três minutos, desde que você dava o grito ‘é um assalto’ até o momento em que o último saía do banco. De três a quatro minutos depois de sair do banco, a gente já tinha abandonado carro, estava em outros carros, longe dali. Controlávamos inclusive o trânsito na rua. O objetivo era não dar tiro. ‘Fazíamos’ quartéis inteiros sem dar um tiro. Agora, podia acontecer.

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Foi muito torturado na cadeia?
Nos primeiros meses, direto. Com todas as práticas que você pode imaginar. Choque, pau-de-arara, afogamento, porradas em todo o corpo, tentativas de humilhação da [namorada] Maria Auxiliadora, tentando fazer com que a gente simulasse relação sexual, choque no pênis, no ânus, na língua… Enfim, todo tipo de tortura. Durante 29 dias, todos os dias.

Depois disso, foi ficando mais episódica, a cada dois dias, três. Chegava uma pessoa com algum documento, ou que falava alguma coisa, aí você era levado de volta [à tortura].

Fui julgado só em 1977, três anos depois de estar em liberdade. Só que quando fui julgado eu era diretor da editora Abril, onde fui freelancer, repórter, redator, editor, trabalhei na Veja, em várias revistas. Quando eu fui julgado, eu era diretor da Abril; quando fui preso, era um professor de filosofia fugitivo.

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Fui preso várias vezes, um dia, dois.A última delas, em março de 1980, quando o Lula foi preso, em Osasco foram buscar a mim. Fiquei das 5h da manhã até o final da tarde.

Aí os jornalistas entraram em assembleia geral, declararam assembleia e as redações pararam. No fim da noite me soltaram, fui para a assembleia falar para 700. A luta contra a ditadura, pela anistia, estava chegando ao ápice. Você já não era mais preso e humilhado, torturado. Você era preso e era solto para falar numa assembleia, era prêmio (risos).

Como lidavam com as divergências internas dentro do movimento de luta contra a ditadura?
Os grupos tinham rachas, não é? O próprio Lamarca rachou com a gente por suspeita de divergências políticas. Ele achava que a gente queria fazer movimento operário demais, e que isso atrasava a guerrilha no campo. Era uma suposição dele, não correspondia aos fatos, mas acabou levando a um racha. Agora, as organizações de esquerda passaram por um processo de atomização muito forte.

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“Eu era filho do meu tempo”

O partidão (PCB) foi tendo vários rachas, Polop (Organização Revolucionária Marxista Política Operária) vários rachas… Chegamos a contar cento e tantos pequenos grupos. A VAR-Palmares representou uma tendência contrária, ela foi aglutinando. Ela aglutinou pelo menos 30, 40 desses grupos. Nossa proposta era aglutinar mais.

Era aglutinar todos. Nós éramos uma das maiores. Além da gente tinha uma outra organização que era grande, que era a ALN (Ação Libertadora Nacional), que era nacionalista e tinha um chefe, [Carlos] Marighella. A nossa era socialista e tinha uma direção colegiada. Eram diferenças de concepção, aí tem muita teoria, muito debate.

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Nós, não éramos críticos somente do governo militar, éramos críticos do Estado. Você lutava ao mesmo tempo contra a ditadura militar e contra as heranças colonialistas e escravistas da nossa formação social.

“Não adianta eu ser. É preciso que o Brasil seja [a favor da revisão da Lei da Anistia]”

 

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A nossa [base] era mais próxima do primeiro momento da Revolução Cubana. Depois, sob influência soviética, a revolução cubana mudou. Virou uma ditadura do proletariado. Só que não era do proletariado. Era uma ditadura do partido do proletariado, burocrática.

Nós tentávamos fazer uma ditadura da própria classe, que seria uma democracia social, centralismo democrático. Claro que havia aí muitas ilusões, muitas coisas que não dariam certo, a vida não permitiria. Então, a gente não queria ganhar, por exemplo, a ALN ou outras organizações que se definiam como de Libertação Nacional. Nós queríamos ganhar as que pregavam o socialismo. Uns 25 a 30 grupos a gente ganhou.

Até que aconteceu o racha dentro do nosso meio, com o Lamarca, o que dificultou o trabalho de agregação que vínhamos fazendo. Levou tanto a VPR quanto nós a um isolamento social. Antes de sermos derrotados pela repressão, fomos derrotados pelas nossas próprias divergências.

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Tem alguma coisa que o senhor se arrepende de ter feito na luta contra a ditadura?
Eu era filho do meu tempo. Era fazer o que fiz ou ser indigno. Ninguém se arrepende de ter sido digno, de ter feito, naquele momento, o que deveria ser feito. Não tinha como fazer diferente, com todos os erros que nós cometemos.

Quais os erros cometidos?
Não planejamos o suficiente, não enraizamos os trabalhos, tivemos pressa, não pensávamos em alianças. Não significava deixar de ser socialista, mas devíamos ter trabalhado melhor a ideia de alianças, para não ficar isolados. Podíamos ter trabalhado melhor do que trabalhamos a propaganda fora, no exterior. Poderíamos ter sido menos ansiosos.

O senhor continua socialista? É filiado a algum partido?
Não sou filiado a partido nenhum. Mas me considero socialista, socialista do século XXI. Ainda sou um leitor do [Karl] Marx, mas, além do Marx, passei a ler, sobretudo [Antonio] Gramsci (filosofo, co-fundador do Partido Comunista Italiano), que contribui para as minhas análises.

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Hoje leio todas as abordagens teóricas, sem preconceito, para identificar o que elas produzem, para identificar o que elas produzem de conhecimento cientifico. O que me permite organizar isso, são as ideias do Gramsci, a teoria da hegemonia, do bloco histórico… que não é mais aquele marxismo da teoria do imperialismo, do qual nós já éramos críticos na luta armada, mas conhecíamos pouco.

Acabei lendo muito na cadeia. Meus quatro anos de cadeia foram a minha grande universidade e eu devo à ditadura.

Como vê as ações do governo Dilma, uma ex-guerrilheira, no sentido de reparação às atrocidades da ditadura?
Com a Comissão da Verdade, ela chega até o limite na questão. A primeira questão é saber, depois você vê como a sociedade reage a isso. Se a sociedade quiser uma apuração mais profunda, compete a ela. Ela está fazendo o correto, sendo prudente.

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A Comissão da Verdade não tem caráter punitivo, mas só de esclarecer o que for possível, é muito. Depois, a sociedade vai ter que ver como ela fica com a sua consciência.

O senhor é a favor da revisão da Lei da Anistia?
Pessoalmente, sim. Mas não adianta eu ser. É preciso que o Brasil seja.

“Formávamos bons quadros”

Como o senhor viu esta sinalização da presidente Dilma esta semana de que não é a favor da revisão da Lei da Anistia?

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Ela só podia dizer isso como presidente. Porque ela é chefe de governo. Em novembro, reuni na minha casa, em Osasco, 100 ex-militantes da VAR-Palmares. Ficamos dois dias. Lá, eu disse o seguinte: ‘a Dilma é a maior prisioneira do país’. Ela é presa do Estado, da burocracia estatal. Ela não tem vida privada. A presidente é progressista, o Estado brasileiro é conservador. E ele coloca os limites para a ação da presidente.

Ela até avança. Colocou Comissão da Verdade, só que a comissão não pode punir. Ela tem que se declarar contra a revisão da Lei da Anistia, ainda que, lá no íntimo, ela pudesse achar isso necessário.

Só que como presidente ela não pode dizer. Ela é a guardiã do equilíbrio, não pode romper. Agora, se a própria sociedade se mobilizar, se sentir indignada e exigir uma apuração mais profunda, ela teria argumentos para ir além.

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Sozinha ela não vai além. Ela está limitada por ser chefe de governo de um Estado que é conservador.

O senhor chegou a conviver com a presidente Dilma na época da VAR-Palmares?

Sim, era um contato próximo, diário. Moramos na mesma casa. Depois que saímos da prisão, continuávamos a nos ver todo mês. Ela vinha para São Paulo com o ex-marido. Eu fui para o Rio Grande do Sul, três vezes, nos encontramos no Rio de Janeiro, íamos à praia. Coisa de amigos.

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E como foi conviver com a Dilma? Como ela era no dia a dia?
Nunca tive a imagem de alguém arrogante, autoritário, que procuram passar dela. Pelo contrário, ela brincalhona, algumas de minhas namoradas foram ‘armação’ da Dilma, que dava uma de Santo Antonio. É uma pessoa amigável, fazia piadas com o Lamarca, paródias.

A Dilma é uma pessoa que dá muito orgulho. Me dá satisfação saber que um grande que nossa organização formou, que teve essa história, é a presidente da República, o que mostra que, apesar de nossos equívocos, nós formávamos bons quadros. E não é só ela.

O presidente do PT, Rui Falcão, também era militante nosso. O Fernando Pimentel, que deve ser o governador de Minas também, Bete Mendes, o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, também era militante nosso. Então, formamos bons quadros.

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O senhor chegou a reencontrar algum de seus torturadores?
Eu fui dono de um jornal, o Primeira Hora, em Osasco. Lá, fui muito procurado por um [torturador] que queria me pedir perdão, me dar a mão. E eu sempre me recusei. Disse que ele precisaria fazer isso e pedir desculpas, perdão público, às famílias e para a comunidade de ex-presos políticos.

Teve um outro que me encontrou e disse: ‘você deve morrer de ódio da gente’. Eu disse: ‘não, eu tenho pena de vocês, porque vocês são sub-humanos’.

Ele disse: ‘todo regime precisa de um torturador, se vocês tivessem ganho, eu teria emprego com vocês’. E eu: ‘se um regime que eu apoiar, um dia usar gente como você, eu estarei na oposição. As nossas morais não batem’.

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7 COMENTÁRIOS

  1. Grande amigo e mestre Espinosa! Um abraço forte deste companheiro que você ajudou a transformar em jornalista e continua sendo um "bom menino"! Acredito, Espina, que eu cheguei, sim, longe, como você previa (e nem precisei entrevistar a vendedora de Yakults!); e você tinha razão quando me ensinou naquele dia sofrido para mim lá na redação do PH, na vila Campesina: "Toda grande caminhada começa sempre pelo primeiro passo!" Obrigado por tudo que fez por mim, "chefe"! Minha eterna gratidão por sua entrega à luta pela volta ao estado de direito no Brasil, que quase custou sua morte!

  2. Gostaria muito que o Espinosa escrevesse um livro contando a sua história, seria uma contribuição muito importante para que as novas gerações soubessem sobre esse período ainda nebuloso da história deste país.

  3. Os torturados e torturadores continuam, somente mudam os atores. Concordo com Espinosa que falta uma revolução cultural, de ideias, e isso ainda levará bastante tempo.
    Espinosa, parabéns pela contribuição à memória, à História, revelando aspectos da sua vida e luta num pedaço do mundo que sempre foi e será injusto, enquanto o ser humano se comportar como filho de uma bactéria.
    “Somos filhos de Deus e, por isso, devemos nos pautar pela bondade, altruísmo e pureza, princípios que vão de encontro à natureza humana: egoísta, impura e tendente à maldade”.
    Olhai para os presídios, hospitais e para como o ser humano continua incitando a luta de classes, a exclusão e à tortura. Gisele Pecchio Dias

  4. Boa entrevista. Trabalhei com o Espinosa no Primeira Hora, nos anos 90. Mais tarde, já no mandato do deputado federal João Paulo Cunha (PT), tive a honra de trabalhar e conviver com o Roque da Silva, que também lutou bravamente contra a ditadura. São exemplos pra mim. São pessoas que respeito e admiro.

  5. Muita gente me pergunta do Espinosa (trabalhei no Primeira Hora nos derradeiros anos). Olha ele aí! Gostei da entrevista, focou bem no assunto dos 50 anos da Ditadura. A revisão poderia ter sido mais detalhista (numa leitura atenta vemos diversos deslizes), mas nada que comprometa a qualidade da matéria como um todo. Parabéns.

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