Início Cultura “Acho um erro criminalizar um tipo de música”, diz Fernando Anitelli

“Acho um erro criminalizar um tipo de música”, diz Fernando Anitelli

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O músico osasquense em visita à redação do Visão Oeste / Foto: Francysco Souza
O músico osasquense em visita à redação do Visão Oeste / Foto: Francysco Souza

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Jefersom Martinho e William Galvão

Na quarta-feira, 4, o líder da trupe O Teatro Mágico, Fernando Anitelli, visitou a redação do Visão Oeste e falou sobre seu recém lançado quarto álbum de estúdio, Grão do Corpo, as mudanças e nova fase da banda, além de política cultural, música livre e sua relação com Osasco.

Visão Oeste: Você acha que o modelo clássico de se fazer música, com gravadora, está acabando nessa era da internet?

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Fernando Anitelli: Não é que ele vai acabar, surge mais um novo modelo. Eles vão coexistir, porque rádio e TV não vão sair agora da mão dos poderosos, dos grandes, hoje a cultura informacional, dentro da internet, por exemplo, os bens não são mais materiais, é tudo imaterial. O Google, o youtube, são coisas que a gente coloca de conteúdo pra galera e que eles, em cima disso, fazem uma grana. Então, eu vejo que ainda vão continuar. Hoje não são nem mais as gravadoras que pagam jabá para as rádios, são os próprios empresários. As gravadoras não compreenderam que deveriam criar outras parcerias com o próprio público, usar essas ferramentas, uma saída. E o que acontece, cria-se um movimento onde a gravadora se abstém disso e passa a pegar do artista dela porcentagem do show. Quem ganha com música sendo executada em rádio, por exemplo, não é o artista, é o Ecad, que é o Escritório Central de Arrecadação, que não é público, mas funciona como tal. Ele pega dinheiro de todo mundo e repassa só pras músicas mais tocadas, mas quem são as músicas mais tocadas? Justamente as músicas que essa galera que investe uma grana, paga como se fosse um anuncio, entra no rádio, toca a música no rádio, o Ecad repassa, toca de novo… Então vira um ciclo, ninguém sai disso.

Por que ainda vemos algum saudosismo, justamente quando a tecnologia está tão avançada e proporcionando tanta coisa nova?

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Fernando Anitelli: Antes nós tínhamos determinados grupos de rock, determinados grupos de samba, que a gravadora investia uma grana e esses grupos tocavam em várias rádios, em temas de novela, comercial, eram subsidiados para existir. Existia já um monte de gente tocando, só não tínhamos acesso. Quando surge a internet abre-se um leque. “Ah, a internet está acabando com a carreira dos artistas”, não, a internet deu possibilidade de a gente conhecer infinitas outras pessoas que faziam seu roquezinho, aquele moleque que fazia rima em casa, que começou a filmar no celular. E aí não tem mais aquela banda, não vamos ter mais essas coisas únicas e grandiosas por que tem muita gente fazendo coisa e hoje o ritmo é superacelerado.

Ouvimos muito as pessoas dizerem que o rock ou determinado estilo acabou. Isso parece de fato um efeito da internet?

Fernando Anitelli: Tem banda boa, mas também temos que buscar. Tem muita gente fazendo coisa ruim, a gente acaba vendo muita porcaria também. Hoje em dias as pessoas reclamam que as músicas falam um monte de besteira, normalmente falando do funk, do sertanejo. O que eu acho um erro também querer criminalizar um estilo de música. O funk é uma delícia, todo mundo dobra as perninhas com aquela batida. Existe música boa e ruim, o estilo não interessa. No Rio de Janeiro você ouve muito funk, tem bailes de melody funk, é mais diluído. Em São Paulo não, aqui é mais putaria. No Rio tem também, mais fica diluído entre outros. Ai você ouve “é essa a geração?”. Também! A gente não pode negar isso, não tem que criminalizar isso. O funk, tal qual o punk, na sua época, é isso: um som minimalista, feio, sujo, ruim, tocado por uma galera meio estranha, mas que falava a real deles. Ninguém gostava, mas mudou uma geração. O funk é a mesma coisa, saiu lá da perifa, vai pro asfalto, aí vai e começa a tocar nas casas de shows da classe média. A burguesia começa a curtir o funk e a própria galera que faz funk na favela não pode, chega a polícia, queima a aparelhagem, fala que é vagabundagem. Mas ali, no asfalto rola, a mesma coisa. O som vem dali, e ali mesmo ele é segregado. Eu sinto realmente é que a galera sente falta de alguns clássicos, que marcaram gerações dos pais – Cazuza, Renato Russo, até o Chico Science, com aquele maracatu. Aí nos anos 2000, começou a dissolver, tudo começou a ficar mais disperso, e não tem mais aquele cara específico, aquela banda. E não é só no Brasil: você começa a ver outras bandas de todo lugar do mundo. Igual ao Teatro Mágico, que só existe se alguém apertar o play. Poucas são as vezes que a gente toca numa rádio, onde a gente aparece na TV. A gente já teve uma música na novela Flor do Caribe (Globo), a música “Canção da Terra”, que há 10 anos é o hino dos movimentos campesinos, do MST, que a gente regravou.

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Como foi negociar com a gravadora e com a Globo para a Canção da Terra entrar na novela?

Fernando Anitelli: Essa é a única música no disco que é livre. O acordo foi que a música pode ser compartilhada, reproduzida, repassada. As pessoas podem baixar, ou seja, se alguém baixar não tem que ser criminalizado por isso. Feito esse trato, nós conseguimos lançar pela “Som Livre”, uma gravadora que, apesar desse nome, fez pela primeira vez um contrato de música livre. Isso é uma vitória sim, a gente entrou pela porta da frente, com respeito.

A licença que vocês usam (Creative Commons) cria alguma dificuldade na hora de negociar show?

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Fernando Anitelli: Não, de maneira alguma. É até muito importante as pessoas saberem disso, não causa impedimento algum. Eu não sou contra o direito autoral, e ainda existe um debate gigante sobre o direito autoral. Nada do que eu faço é exclusivamente meu, eu não inventei a roda, nem o cara que inventou a roda inventou a roda. Tudo que a gente faz são recombinações, a gente ouve um monte de coisa, recombina, toca do nosso jeito, faz outra. Em tudo é isso, na medicina, no direito e na música. Então, não implica. Quando você toca uma música ao vivo você tem que receber do Ecad, assim como no rádio, na TV. O problema é que o Ecad recolhe de todo mundo e repassa pros maiores, então às vezes a musiquinha tocou uma, duas, três vezes no rádio e o cara nem vai ver a cor desse dinheiro, ele vai pra Ivete Sangalo e pro Michel Teló. Na música acontece isso, só que a diferença é que nós temos tecnologia hoje pra desmitificar isso ai e encerrar esse debate.

Um dos primeiros a inaugurar essa relação com o mercado na produção independente foi o Lobão. Que mais recentemente assumiu um perfil mais polemicista…

Fernando Anitelli: Também, o Lobão ainda é exemplo pra muita coisa. Exemplo para “não se deve ser assim”, como exemplo de “que ideia legal”. Ele era de uma gravadora, para de vender CD, a gravadora manda ele ir embora, ele fica na miséria e tem uma ideia criativa, grava seu som e bota na banca de jornal, criando a revista UP, Universo Paralelo, que vai com o CD dele. Ele vendeu mais do que quando ele estava sozinho com a gravadora. Então ele pensou que se ele vendeu mais, a gravadora estava mordendo em algum lugar. Então cria um novo caminho. Só que o caminho dele funcionou por que ele já era o Lobão. Foi o que o Radiohead fez com o In Rainbowns, no esquema de pague-o-quanto-quiser-na-nossa-música. O que a gente faz hoje é ‘baixa de graça’. O Radiohead fez “paga o quanto quiser”, que é a mesma coisa que baixar de graça, com a chance de “talvez você possa me ajudar”. A média do publico que pagou foi 15 libras por CD. E eles fizeram milhões porque, também, eles já eram o Radiohead. Mas isso é importante por que quando o Lobão surge fazendo isso, o rastro disso vem junto. Outras pessoas acabam tendo essa ideia e os desdobramentos dessa ideia ajudam na cena independente. A mesma coisa o Radiohead, ele ensina uma autonomia para as bandas que de repente teriam medo.

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Em Grão do Corpo e há certa mudança na banda, principalmente na sonoridade.

O que você destaca de mudança desde A Sociedade do Espetáculo?

Fernando Anitelli: Eu sempre falei que faria uma trilogia, por que a gente cresce vendo Indiana Jones, Guerra nas Estrelas, O Poderoso Chefão. Então tudo que a gente acha que tem que fazer é uma trilogia. Mas é uma trilogia a lá George Lucas né (risos), faz as três primeiras, depois tem o 0,1,2,3… Depois dos 3 discos, e do ao vivo, eu já tinha gravado o meu solo [As claves da Gaveta] e achei que era hora de começar de novo. Esse álbum, Grão do Corpo, era na verdade pra ser o novo álbum branco, só que os Beatles já fizeram. Então, a gente pensou, vamos fazer o álbum preto, só que o Metallica já fez também. Aí a gente pensou em fazer o Grão do Corpo, um álbum preto e branco. Ele tem essa coisa da mandala, de uma semente, o grão. O que é o grão? O que é o corpo? Começar de novo, um novo círculo, essa metáfora do grão: que impulsa a vida, que gera frutos. Um grão nunca está sozinho, está sempre com milhares de grãos. A ideia é justamente quem somos nós nessa cadeia produtiva. Grão? Corpo? Será que somos o grão de uma sociedade? A sociedade é o grão de uma nação? A ideia era brincar.

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Com isso, vocês vieram com uma pegada mais crítica…

Fernando Anitelli: Foi inevitável, a gente tinha que falar do que estava acontecendo com a gente. A gente tinha que falar do que estava nos permeando, as pessoas hoje são amarradas no posto e linchadas por causa de um boato. São presas sem prova alguma, por que “acham”. A maioria dessas pessoas são pobres, pretas e putas. As pessoas são assassinadas em função da sua orientação sexual. Não dava pra aparecer com um álbum colorido, cantando “vamos cantar a alegria”, nesse momento do Brasil. Tinha que ser na veia, então Grão do Corpo vem já assim. Na música que abre o disco Mãos aos Desolados a gente fez um web clipe, eu apareço sem maquiagem, dançando, sem cantar, coisa que a gente nunca fez. E é isso mesmo, a gente tinha que fazer coisas que não tínhamos feito ainda. Eu fiz que nem o David Bowie fez com o Ziggy Stardust, claro, cada um na sua proporção – é sempre bom a gente se comparar (risos). Ele surge com aquele visual, cabelo ruivo, um olho de cada cor, aquele ombro magro. E você fala: “meu, esse cara veio do espaço”. Ai então ele mata o personagem. Isso é importante. Eu peguei aquele meu personagem clássico do Pierrot, tirei a lágrima, e matei esse personagem. Ele some, surge outro, com outra cara, e aí uma pegada mais ácida, piadas mais ácidas, um som mais urbano, mais denso. As músicas não surgem mais do meu violão e vão pra banda. Elas surgem da banda, de riffs, e eu vou encaixando a letra, colocando outros riffs meus. Passo a fazer um álbum inteiro em parceria com o Daniel Santiago, o guitarrista e diretor musical, totalmente genial; com o Gustavo Anitelli, que é meu parceiro de letra agora. A gente se fundiu e ficamos ali produzindo. A gente chamou o Marcelo Sommer, um estilista superbacana. Ele faz um corte clássico do circo com o pós punk, mistura bota com roupa rasgada. E a música também traduzindo essa mudança estética.

Como anda o seu projeto solo e quando o Teatro Mágico toca em Osasco?

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Fernando Anitelli: O projeto solo está de stand by. Já esteve outrora em situação de stand bye bye (risos). Por que o Teatro Mágico é o carro chefe, o que sustenta minha família, o escritório, os músicos todos, pra trabalhar com bons músicos tem que ter datas de show, tem que movimentar a coisa. Mas eu penso sim em gravar outro álbum solo, tenho vontade de fazer um projeto infantil também. E Osasco, a gente ainda não tem previsão pra voltar, mas a gente sente que falta um espaço [para espetáculos] em Osasco.

Como você vê o cenário cultural de Osasco hoje?

Fernando Anitelli: Hoje Osasco tem tanta capacidade, tem tanta coisa legal, mas às vezes se perde. Na música, você tem que fazer do seu jeito. Agora tem o MC Guime bombando, tem o Teatro Mágico. A gente foi exceção? Não, costumo dizer que nós somos uma possibilidade, exceção é dizer que só a gente faz… Isso não existe, isso é uma possibilidade, o formato do Teatro Mágico é uma possibilidade, o formato do Guime é uma possibilidade. Uma vez eu tive uma discussão com o Rick Bonadio no twitter justamente por isso. Ele escreveu que quem dá a música de graça é idiota. Ai eu respondi que não funciona assim, que tem uma geração gigante ai fora que compreende que a música tem que ser compartilhada e livre. Antes quem dependia unicamente de rádio e TV pra divulgar a música, hoje consegue de uma maneira mais democrática, através da internet, apesar de não ser uma ferramenta totalmente democrática em função das telefonias e tal, mas é muito mais do que o rádio e a TV. Você consegue ganhar teu público, conversar com teu público, criar uma biblioteca de vídeo, de texto, tudo ali. Ele [Rick Bonadio] disse: ‘Ah, vocês são uma exceção’. Ai eu respondi que somos uma possibilidade e perguntei se ele toparia fazer um debate, na internet, ao vivo. Ai ele falou que não ia ficar discutindo com gente que não está no plano de música que ele está. Mas por quê? Eu entendo o que ele diz também, além de ser uma fuga. É assim: ‘eu, Rick Bonadio, trabalho com isso, eu desembolso uma puta grana com essas x bandas na televisão, e você está num lugar que eu também desconheço’. O Bonadio não entende de música livre, de compartilhamento, de internet, de uma geração, sabe, ele vem daquele esquema da gravadora, da rádio, dessas negociações já clássicas.

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